Eu me lembro e nem tem como esquecer.
Era janeiro, 28. Ano passado. Eu saí na rua.
Eram incrédulas as caras das pessoas que eu vi.
Ninguém se olhava nos
olhos.
Os rostos cabisbaixos pareciam não poder acreditar.
As vozes, todas eram
baixas.
Havia uma dor no silêncio, que só se rompia pelo som de sirenes, e sirenes, e sirenes...
Todas eram de
ambulância.
Cada uma que cruzava era como se uma outra adaga atravessasse pelo
peito e insistisse em dizer que era verdade.
Negros eram os sentimentos que cobriram minha cidade, assim
como negros eram os panos que ornavam as ruas e as lojas com a mesma
informação: luto.
A cidade... Sim, a minha cidade.
Não de berço, mas a que me
acolheu como sua filha e me disse que meus sonhos eram possíveis.
A que me deu
motivos pra acreditar que ser feliz era possível.
E era. Até a noite anterior,
era...
As poucas lojas que estavam abertas não sabiam porque estavam.
Não
havia clientes, não havia o que comprar, não havia contas a serem pagas.
Existia apenas uma dor profunda
e todos os sentimentos do mundo a serem velados.
Era 28 de janeiro do ano passado e eu saí na rua.
Saí pois ficar em casa era insuportável.
Não conseguia ver a
televisão, não conseguia entrar na internet, não conseguia dormir.
Nem fazer
nada.
Era janeiro, 28.
Mas era estranho pois não fazia calor aqui no estado das 4 estações.
Aliás, também não fazia frio.
A propósito, não fazia nada. Se fazia, não tinha
como sentir.
O que tomava conta de mim e de todos era o vazio. E neste vazio cabiam todos os sentimentos do mundo.
E eram pretas as letras que se espalhavam pela cidade a informar o que sentíamos.
Ah, o Arco... Que sempre me pareceu um braço a acolher milhares de filhos, se tornou pra mim um boca triste, em um rosto desfigurado tão triste quanto sua boca.
Sempre quis, mas eu nunca consegui falar sobre aquele dia.
Era janeiro, 28.
Um dia que começou na noite do dia 26. Que se transformou em 27 quando chegou a meia noite.
Pra mim, parecia 26.
Um calendário me informa que são 365 o número de dias que me separam do dia que eu não quero esquecer: eu quero que ele sequer tivesse existido.
Mas meu querer sequer se pode querer.
Hoje falamos que queremos justiça por ser o que podemos querer.
Mas o nosso querer não tem querer.
E naquele janeiro sabe, que era dia 28, eu senti em mim todos os sentimentos do mundo.
E voltei a ser uma menina que não dormia com a luz apagada.
E naquele janeiro, 28, eu fazia 28 anos. Quando pequena eu pensava que deveria ser muito legal fazer 28 anos no dia 28.
Quem diria, não foi.
Janeiro, 28. Pois bem, remontando o ano de 1985, foi o dia que eu nasci.
Mas no ano passado foi estranho. Foi estranho saber que eu tinha que comemorar o fato de poder estar de aniversário. Mas eu não consegui. Estavam em mim todos os sentimentos do mundo.
E está perto de mais um aniversário.
E confesso que temo que o dia 28 de janeiro desse ano comece na noite do 26.
É, não vai...
Mas ainda arde na pele uma estranha culpa de estar de aniversário.
Podia esta culpa ser sentida pelos culpados, não por mim.
Era janeiro...
Vocês sabem do que falo.
E lhes digo que, uma cidade, uma vez quebrada, sabe se reconstituir.
A moral de seu povo, uma vez pisoteada, não.
Parece que é um aniversário que vai "Do fim ao começo", do começo ao fim, enfim, não sei bem.
E amanhã faremos um aniversário indesejado, voltando a ser notícia pelo país e pelo mundo que nada fez ao longo deste um ano.
Sabem o que mudou aqui desde o Janeiro, 27, do ano passado?
Nada.
No máximo, portas de emergência em alguns lugares.
No máximo, portais de dor ao longo da cidade.
Os culpados são covardes demais pra se culpar.
Deviam se auto-enjaular. E desejo que o façam nem que seja em seu remorso.
Mas sei que desde aquele Janeiro, 28, ainda residem em mim - e na minha cidade - todos os sentimentos do mundo.
Do fim ao começo
Letra: Juca Moraes
Música: Piero Ereno
Intérprete: Pirisca Greco
Festival: 28ª Gauderiada da Canção Gaúcha, Rosário do Sul
Foi como calar
seus sonhos
Desviar-lhe a
estrada
E cegar-lhe a
faca
Antes de
chairada
Foi como sentir
o tempo
A estancar as
horas
Apear do mundo
Descalçando
esporas
Foi como se o
próprio céu
Derramasse as
estrelas
E a terra tão
pequena
Para recebê-las
Foi tudo como se
fosse
Mas não foi
assim...
Veio do fim ao
começo
Do começo pra o
fim
Foi o fim de uma
tropeada
Que cessou seus
passos
Foi quando o
campeiro
Descansou o laço
Foi assim que a
mão do vento
Abriu o sol pra
o céu
E acordou o
homem
Que tapeou o
chapéu
Ganhei esta rosa do amor da vida, dia 24 de janeiro deste ano. E a ganhei por amor. Ele sempre me dá flores... Por ela ser de amor, uso a imagem dela aqui. |